quinta-feira, 18 de abril de 2013

Cancro ...

Há muito tempo que ando para escrever sobre isto, mas nunca senti coragem nem à-vontade para tal. Hoje, por algum motivo que não sei explicar, as palavras parece estar a fluir um bocadinho melhor e os pensamentos estão mais ou menos em ordem, por isso resolvi tentar.

Sempre conheci pessoas com familiares afectados pelo cancro. Cresci com a noção de que o cancro é uma doença muito má, muito perigosa, que raramente dá tréguas às pessoas que o "contraem". Há +/- 10 anos que vivo de perto da luta de uma família que me é muito próxima e querida, e vi pelas minha amigas a sofrimento que é enfrentar a incerteza e a instabilidade que esta doença trás. E admiro tanto essa senhora, que por mais de 10 anos tem lutado como uma verdadeira guerreira e tem conseguido vencer sempre. Não é qualquer pessoa que passa o que ela tem passado e ainda assim ultrapassa os momentos maus (sim, porque os há e haverá sempre), levanta-se outra vez, sorri, vai à luta e aproveita cada bocadinho de vida que tem. Queria Deus que essa força e essas vitórias durem por muitos anos.

No entanto, nunca tinha percebido o quanto o cancro é uma doença avassaladora ... acho que só percebe isso quem a sente na pele, quem a vive em 1ª mão. Não é uma doença má só para quem a tem, é uma doença que magoa famílias inteiras, que causa uma destruição tal que todos saem fragilizados dela (quando saem ...).

No dia em que me foi dito que a minha mãe estava doente, com cancro, eu tinha acabado de chegar para passar o Natal em casa. Eu não consegui chorar. O meu choque e a minha incredulidade foram tão grandes, que eu só conseguia ver um enorme ponto de interrogação dentro da minha cabeça. Qual era a pergunta, não faço ideia. Seria "porquê" ? Não sei. Mas na altura revi todo um ano de tristeza em que tantos amigos próximos perderam os pais, avós, família. Na altura soube que estava a morder a minha própria língua por ter dito vezes sem conta que o ano não podia ser pior. Podia sim. E foi. Desde esse dia, eu nunca chorei à frente da minha mãe nem do meu pai. Todos os dias acordava de madrugada para poder chorar em paz, no silêncio da minha casinha, no escuro tão mais seguro da minha cidade. Uma cidade que eu achei que sempre me protegeria das coisas más, e que no final acabou por se revelar a minha maldição.

A minha mãe foi operada pouco depois do Natal e eu tive a possibilidade de voltar a Portugal para estar presente para poder apoiar a minha família. Nessas 2 semanas em Portugal, eu vi a minha família entrar em colapso. Vi choro vindo de todos os lados, vi fraqueza, vi medo, vi desespero, vi até insanidade. Mas também vi amor. Acho que vi um amor que nunca antes tinha visto. E agora lembro-me de coisas que essas minhas amigas me diziam quando éramos mais novas, quando souberam da doença da mãe delas. O desespero invade-nos, mas o amor também se revela. A dedicação, o carinho, a vontade de proteger. Eu vejo isso nos meus pais, sem sequer estar perto deles.


É isso que a minha família está a passar. Toda esta luta contra uma doença e uma mudança de vida tão drástica que não pedimos e nos foi dada na mesma. Não é fácil. Mas sobrevivemos. E sim, já me sinto à vontade para falar no passado, porque já vencemos muitas lutas e em breve, se Deus quiser, vamos vencer a guerra e gritar ao mundo que somos "cancer free". 

Até lá, fica a mensagem às grandes personagens da minha linda cidade que fizeram o seu papel de más línguas tão bem feito, espalharam a notícia da forma mais maldosa e impiedosa que poderia ter feito, mas graças a Deus isso não nos afectou tanto como estavam à espera. A minha mãe nunca esteve "muito mal, quase a morrer" como fizeram questão de dizer, está em recuperação e bem de saúde, obrigada. Que sejam felizes ou infelizes (como preferirem) porque a nós não nos incomoda minimamente. Dá-me é pena que pessoas que carregam o titulo de profissionais do ensino não tenham ética nem moral nem respeito para lidarem com estas situações. Se calhar o vosso lugar não era em salas de aulas a ensinar boas maneiras às crianças, porque está à vista o resultado que podemos vir a ter.

Muito mais importante que o desabafo anterior, é o agradecimento a quem nos apoiou, a quem nos ajudou e deu a mão. Agradeço às amigas e amigos, meus e dos meu pais, pela presença e disponibilidade constantes para nos ajudarem com algumas coisas que sozinhos não conseguimos. Agradeço à minha outra família, a que não tem o meu sangue mas está no meu corpo e no meu coração por nunca terem deixado de me amar e apoiar. As palavras, as lavagens cerebrais que me fizeram, a angustia que conseguiram ajudar-me a dominar, a força e incentivo que me deram e dão para acreditar que isto vai tudo passar e desaparecer para sempre. E fica o agradecimento aos meus pais, por serem tão fortes para ultrapassar tudo isto sem nunca me pedirem para ir embora. Eu gostava que o tivessem feito ... teria sido muito mais fácil se o tivessem feito. Mas ao pedirem-me o contrário, eu não podia deixar de atender aos vossos argumentos e vontades. Obrigado no entanto por confiarem em mim, por acreditarem em mim e verem em mim coisas que nem eu vejo. Obrigada por não terem sentido medo de deixar tantas responsabilidades nas minhas mãos enquanto aí estive, por me deixarem sentir que faço parte e que tenho de aguentar esta realidade tanto como vocês. Obrigada por não me terem mentido nem tentado proteger do horror que esta doença é. E obrigada por me deixarem acreditar (às vezes mais do que vocês mesmos) que vamos ficar bem.


Eu tinha dito que se algo do género acontecesse aos meus pais, eu voltaria para Portugal no instante em que soubesse. Não voltei. Foi-me pedido que não o fizesse e eu própria senti que não o devia fazer. Porque a vida não estava a acabar, nós não nos estávamos a dar por vencidos só por este obstáculo ter sido posto nos nossos caminhos. Ainda hoje sofro com isso. Essa é a minha parte da destruição. Esse é o mal que o cancro me fez e me faz, a tristeza que carrego comigo todos os dias, por saber que não estou lá a viver e presenciar cada paço e cada momento. Que não estou lá para ajudar e que às vezes fazia falta, porque não há mais ninguém para fazer o que é preciso fazer. Mas eu tenho uma esperança enorme, isso o cancro não conseguiu tirar-me. Eu tive medo, eu tenho medo mas eu acredito que tivemos sorte, porque temos meios e recursos para tratar e acabar com isto de uma vez por todas.

Para muitos isto poderá ser expor demais, mas vendo bem tudo o que passei, tudo o que passamos, eu prefiro contar eu mesma, da minha boca, o que tenho vivido. Que me perdoem os amigos a quem não contei na altura e que estão a saber assim, mas na altura eu não podia nem sabia como contar. Estava a juntar os meus cacos e a encontrar a minha força para viver tudo isto da melhor maneira possível. Hoje, sinto que não estou a expor mais a minha mãe do que algumas pessoas nada próximas da minha família fizeram, portanto mais vale ouvirem de mim do que ouvir de quem acrescenta um e dois e três pontos a esta história.

Obrigada e desculpem ... mas pus o meu coração a falar e foi isto que saiu. <3

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